quinta-feira, 3 de março de 2011

São Cipríano Versus São Cipríano

Comumente ouvimos falar de São Cipriano, o feiticeiro, que terá deixado como legado para humanidade um "livro poderoso" e uma magnifica história de conversão. O dito livro, teria o poder de suscitar fenômenos estranhos e poderosos, como por exemplo:
  • Fazer com que vacas não dessem leite;
  • Fazer animais não serem acometidos por doenças;
  • Ligar os mares para que os pescadores não conseguissem peixes;
  • Fazer um diabinho , à partir de um ovo, que serviria seu criador e atenderia todos os seus desejos;
  • Obter amor das pessoas;
  • Etc
Mas afinal de contas, quem foi Cipriano , o feiticeiro ? Em que época ele teria vivido ? Que livro é esse que teria deixado como legado ? É ele o santo a quem a igreja rende culto de veneração (não confundir com adoração) ?

Examinemos tudo isso mais de perto.


Santo(s) Cipriano(s)  ?

Sim.  Por mais curioso que pareça , a humanidade preserva em seu seio a lembrança de dois homens chamados Cipriano e cujos caminhos teriam se juntado aos caminhos da fé cristã.

A história guarda o nome de S. Cipriano, bispo de Cartago, no Norte da África entre 249 e 258. Foi um dos Pais da Igreja (Padres Latinos). Deixou várias obras de grande importância para a fé , hoje em dia editados, e que nada tem haver com magia, feitiçaria ou ocultismo. Foi um mártir heróico e marcou a igreja de seu tempo, sendo então reverenciado todos os anos ao dia 16 de Setembro.
Trata-se de um Santo muito estimado e de grande fama.

O Martirológio Romano guarda a data de 26 de Setembro para S. Cipriano e S. Justina, martires que teriam sofrido em Nicomédia  no ano de 304 o ponto alto de sua caminhada: o encontro com a morte.
Sobre S. Cipriano e S. Justina existem relatos em latim, sirío, árabe, copta,  páleo-slavo e grego (a mais antiga delas) , os antigos tinham grande apreço por ambos e sua festa é comemorada até mesmo pela Igreja Ortodoxa (o que demonstra a antiguidade da devoção).
As versões citadas acima porém não coincidem entre si (pelo contrário, divergem) e aliando a isso o fato de não haver nenhum documento histórico confiável que demonstre sua existência faz-se crer, na igreja atual, que  eles não tenham existido.

O Que Dizem os Relatos Sobre Cipriano, O Feiticeiro ?

Não vamos aqui tratar de todos os relatos sobre Cipríano e Justina , faltaria tempo para uma pesquisa tão aplicada, vamos cuidar unicamente do relato grego (o mais antigo).

Antes de nos referir ao relato porém, vamos dedicar um paragrafo a situar Cipríano  à uma época e traçar-lhe um pequeno perfil.

Cipriano, o feiticeiro, era filho de pais pagãos muito ricos. Nasceu em 250, na Antioquia, região situada entre a Síria e Arábia e pertencente ao governo da Fenícia. Desde a infância, Cipriano foi levado aos estudos de  alquimia, astrologia , bem como diversas modalidades de magia e feitiçaria.
Aos trinta anos de idade Cipriano teria ido à Babilônia a fim de conhecer a cultura ocultista dos Caldeus.

Vamos agora ao que é relatado , sob o titulo abaixo:

Conversão de São Cipriano

No começo do século IV,  em Antioquia da Síria o diácono Prailio pregava aos quatro ventos as verdades da fé cristã, quando uma jovem chamada Justina o ouviu a partir de uma janela e ficou impressionada. Procurou então a jovem sua mãe, Cledônia, que,  por sua vez, o relatou a seu marido Edésio. A familia de Justina ficou perplexa ante o que ouviu e não conseguia decidir entre tomar a direção da conversão ou não. Porém, na noite seguinte, apareceu-lhes Jesus Cristo e seus anjos dizendo : "Vinde a mim e eu vos darei o reino dos céus". Ao raiar o dia , o pai e mãe de Justina a levaram ao diácono Prailio, que os direcionou ao bispo Optato. Foram então batizados chegando mesmo a ordenar Edésio como sacerdote (este antes era sacerdote de um culto pagão). Edésio veio a falecer dezoito meses depois de sua conversão; Justina continuou a frequentar diligentemente a igreja e no caminho de sua casa ao templo era sempre observada por um jovem de nome Aglaidas que por ela se apaixonou. Aglaidas pediu-a em casamento e diante de sua recusa (que queria permanecer virgem)  tentou sequestra-la, ela porém foi socorrida por populares que colocaram Aglaidas e alguns comparsas em fuga.
Aglaidas não desistiu de seu intento. Foi a procura de um poderoso mago chamado Cipriano e lhe prometeu dois talentos caso conseguisse fazer Justina por ele se apaixonar. Cipriano então evocou um demônio para ajudar na empreitada; este deu-lhe um veneno para ser espalhado em torno da casa da moça. Quando Justina levantou-se para rezar sentiu o ataque do Maligno; mas guardou-se fazendo o sinal da cruz sobre si e sobre a casa e orando fervorosamente ao Senhor. O demônio, posto em fuga pelo poder da oração de Justina, avisou Cipriano sobre o fracasso da empreitada. O mago, querendo salvar sua fama, chamou um demônio mais poderoso que o primeiro; também esse foi vencido, mas nem esse nem o primeiro revelaram a Cipriano o que os pôs em fuga.

Julgando-se ferido em sua "honra de feiticeiro", Cipriano invocou o Pai dos Demônios que lhe prometeu entregar a moça em seis dias. O Tentador então tomou a forma de uma jovem ... Declarou então a Justina que Jesus Cristo a havia enviado para levar com ela uma vida perfeita.

Em uma de suas conversas com Justina perguntou: "Que vantagens levas em manter uma vida de castidade ? Vejo-te esgotada pelos jejuns". Justina então respondeu: "O fardo é leve mas a recompensa é enorme". Prosseguiu então o demônio, ainda disfarçado: "No começo Deus abençoou Adão e Eva dizendo-lhes para crescer e multiplicar", concluiu então: "Parece-me que se permanecemos virgens desprezaremos a palavra de Deus e seremos tratadas como rebeldes no dia do juízo". Essa argumentação abalou Justina, mas essa se recupero e, fazendo o sinal da cruz com oração, soprou sobre o demônio, que fugiu.

Cipriano então, revoltado ante a noticia de que mais uma vez falhara, ordenou ao Demônio que lhe dissesse como Justina conseguira resistir a suas investidas. Esse confessou a Cipriano que o poder do sinal daquele que fora crucificado era maior que o poder das trevas. Cipriano enfurecido ordenou que o Demônio se apartasse dele e nunca mais cruzasse seu caminho, o Demônio tomado de ódio investiu contra Cipríano que o repeliu fazendo o sinal da cruz.

Procurou Cipriano o bispo Antímio e solicitou que esse o instruísse na fé cristã. Voltou Cipriano após ter recebido instrução a sua casa e destruiu seus ídolos e todos os objetos  ligados a feitiçaria.

Oito dias depois, no Sábado Santo, Cipriano foi batizado. Passado mais oito dias recebeu o ministério de leitor; vinte e cinco dias depois foi feito ostiário e subdiácono ; cinquenta dias depois foi feito diácono e , finalmente, no fim do ano, presbítero.

Passados dezesseis anos o bispo Antímio, a beira da morte, conseguiu que Cipriano fosse feito bispo para o substituir.

Cipriano fez então de Justina diaconisa de uma comunidade monástica e passou o resto de sua vida dedicando-se a combater heresias.

A narração da conversão de Cipriano tem na literatura antiga dois complementos , de índole grotesca , a "Confissão de Cipriano" e a "Paixão de Cipriano".

Confissão de São Cipriano

Como "Confissão de São Cipriano", temos uma ampliação infeliz do relato de sua conversão. Nessa ampliação, Cipriano toma a palavra para explicar seu relacionamento com o demônio, as feitiçarias e encantamentos que praticava. O autor da narrativa acumula contos sobre mágicas e por muitas vezes chega ao ridiculo, como no momento em que narra que Aglaídas tomou a forma de um passaro para espreitar Justina; todavia, assim que viu a moça , perdeu a forma de passaro, voltou a forma de homem e experimentou grande dificuldade para sair do telhado.

Paixão de Cipriano

A narrativa da paixão vai de encontro a necessidade de por fim aos relatos anteriores. Conta-nos a paixão de Cipriano que ele e Justina foram presos por ordem do Conde Eutólmio e levados a Damasco. Após interrogatório Cipriano teria sido dilacerado por unhas de ferro e Justina teria sido ferozmente chicoteada. Ambos porém teriam sobrevivido. Foram mais uma vez levados ao tribunal e condenados a morrer em banho de óleo fervente, contudo não sofreram sequer uma queimadura ao serem imersos no óleo. Os dois mártires foram levados para Nicomédia , onde residia o imperador Diocleciano. Este mandou que fossem decapitados, o que se cumpriu. Seus cadáveres foram expostos à feras para serem devorados mas as feras os deixaram intactos. Seis dias depois os corpos foram levados para Roma por marinheiros cristãos onde uma certa Rufina lhes deu honrosa sepultura.

Isso é o que se tem a dizer sobre Cipriano, mago e martir. Vamos agora voltar a São Cipriano, bispo de Cartago.

O Que Diz A História Sobre São Cipriano, Bispo de Cartago ?

Sobre Cipriano de Cartago as fontes são inúmeras, reproduzo abaixo o texto do site bibliacatolica.com.br  
Thascius Cecilius Cyprianus, nascido de uma família rica e pagã, em Cartago, entre os anos 200-210. Recebeu em 246 o batismo, sendo ordenado, dois ou três anos depois, bispo de sua cidade. Suas atividades pastorais foram interrompidas pela perseguição de Décio (250), que o forçou a se esconder. Quando muitos apóstatas começaram a ser facilmente readmitidos na Igreja surgiu um cisma.
Em 251, Cipriano volta para Cartago. Num sínodo excomungou os chefes da dissidência laxista e determinou que os apóstatas passassem por severas penitências antes de reingressarem na comunidade. A peste que atingiu o Império em 252 provocou novos sofrimentos e perseguições na África. Nos últimos anos de sua vida, teve de se preocupar com a questão do batismo dos hereges.

Cipriano considerava inválido o batismo ministrado por hereges. Mesmo com a reprovação do papa Estevão, insistiu em manter seu ponto de vista. Foi decapitado no dia 14 de setembro de 258, em Cartago, sob Valeriano. Pelo martírio certamente foi perdoado de seu erro e foi para junto de Cristo.

Escritos de São Cipriano: De ecclesia unitate (c. 251, no qual fica do lado do papa Cornélio contra Novaciano), De lapsis, De habitu virginum, De mortalitate.
No aspecto doutrinário, o bispo de Cartago ensinava que a unidade da Igreja é garantida pela união de todos com o bispo. "Salus extra ecclesiam non est", não há salvação fora da Igreja. "Quem abandona a sede de Pedro, sobre a qual está fundada a Igreja, como pode afirmar que está na verdadeira Igreja?" "Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe". Os recém-nascidos devem receber logo o batismo e a eucaristia. Uma tradição só é válida quando se apóia na "tradição evangélica e apostólica", ou seja, aquela tradição que provém da "autoridade do Senhor e do Evangelho, das prescrições e das epístolas dos apóstolos". Na questão do batismo, ensina que se a verdade se desvia é preciso retornar para as origens, a tradição consignada nas Escrituras. A origem da verdade cristã é a Tradição, o ensinamento de Jesus e a pregação dos apóstolos (observemos, no entanto, que Cipriano dava muito crédito a revelações e visões particulares). O sacrifício do sacerdote é a repetição do sacrifício de Jesus na ceia: ambos representam o único sacrifício da cruz. A penitência consiste na confissão pública dos pecados e na expiação. Todos os justos defuntos (inclusive os não-mártires) recebem sua recompensa imediatamente após a morte. O estado intermediário no Hades se aplica aos penitentes somente.
Considerações Finais

O post foi intitulado São Cipriano Versus São Cipríano pois visava esclarecer a diferença entre S. Cipriano , Bispo de Cartago e São Cipríano , o feiticeiro. O primeiro é venerado pela Igreja Católica por sua vida de santidade e por seu martirio, o segundo (assim como São Jorge) inspira duvidas a quanto ter existido e não mais tem culto de veneração (ao menos não oficialmente, lê-se incentivado pelo Vaticano) entre os católicos.

Analisemos rapidamente os dados que nos fazem crer que Cipríano, o feiticeiro não teria existido e, como por isso mesmo, não deveria ser reverenciado.

Motivos Que Levam Os Historiadores A Tomar Como Mito Cipríano , o feitceiro.

  1. Na lista de bispos de Antioquia não se encontram nem Optato, nem Antímio, nem Cipríano;
  2. O culto dos martires sempre esteve ligado aos túmulos respectivos. Ora, não se conhece nenhum dado arqueológico que indique túmulo de  Cipríano, bispo de Antioquia, ou de Justina, virgem e martir. O autor das narrativas sobre a vida de Cipríano diz que o corpo do herói teria seguido para Roma, mas em lá nunca se conheceu túmulo de Cipríano ou de Justina. Somente na idade média , por uma falsa descoberta de relíquias de Cipríano e Justina perto do Batistério de Latrão (em Roma) que a festa deles foi introduzida na Liturgia Romana.
Origens

Negada a historicidade dos relatos sobre Cipríano, o feiticeiro, pergunta-se: "Porque tais relatos tiveram origem ?"

Tais narrrativas retomam dois temas caros aos antigos cristãos: O do feiticeiro que vende a alma ao diabo, mas se converte, e o da virgem que triunfa e permanece intacta não obstante os esforços que os homens fazem para perverte-la. Os antigos adoravam relatos assim, dai a confecção de contos como o de Justina e Cipríano, a virgem vitoriosa e o feiticeiro arrependido. Essa estima pela temática fez com que a lenda encontrasse grande aceitação. Uma formula interessante que constatamos nessa lenda é a utilização de vários nomes famosos misturados em um só relato (ainda que de forma anacrônica).  Optato era bispo do Norte da Africa; Antímio bispo mártir de Nicomédia; Cipríano bispo de Cartago (anterior aos outros citados); Edésio foi um filósofo. Todos esses personagens eram famosos em Antioquia no século IV (época em que teve origem os relatos referentes a conversão de Cipríano). Ja Justina e Justa (outro nome pelo qual é chamada) eram nomes muito comuns na antiguidade. Quanto aos outros nomes nos relatos encontram-se todos em obras literárias da antiguidade.

Durante muito tempo não foram poucas as vezes em que se tentou fundir a imagem do Cipríano histórico com o Cipríano dos relatos. S. Gregório (bispo de Nazianzo) por exemplo, valendo de textos espúrios proferiu sermão em 379 no qual se referia a Cipríano como bispo e mago. Prudêncio, poeta latino, se deixou levar pela mesma ilusão.

No mais, pode-se dizer que a partir do século IV crescia a lenda do mago e surgiam vários escritos e preces a ele atribuídos.  Destes supostos escritos e preces compilou-se o "livro poderoso de S. Cipríano mago", que depois pois mais ou menos reproduzido sob diversos titulos ("Cipriano capa preta", "Livro de São Cripríano Capa de Aço" e outros).
    Nota final

    Para finalizar podemos dizer com segurança que:
    • Distingue-se Cipríano bispo de Cartago ( + 258) , grande escritor cristão de Cipríano o mago (personagem lendário);
    • Magia e feitiçaria não se coadunam com a mensagem cristã, logo não se pode ter um "bispo mago". O cristão vale-se de orações humildes e piedosas pedindo a Deus e aos Santos aquilo que necessita, sem formulas magicas ou receitas "todo-poderosas".


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