terça-feira, 31 de julho de 2012

Os Mortos Estão Adormecidos ?


Outro dia, no escritório onde trabalho, uma amigo contou-me que um tio seu falecera. Dei-lhe meus pêsames e lhe pedi o nome   de seu ente querido para inclui-lo em orações ao que fui  surpreendido com a frase: "Eu não creio que se possa orar por falecidos, aqueles que se foram estão adormecidos e nada pode ser feito por eles."

Não é raro ouvir a sentença que  aqueles que faleceram estão em estado de não consciência , adormecidos no além. Para os que assim creem. os falecidos são incapazes de receber alguma sanção (logo, não se pode intervir por eles no pós morte), estariam incapacitados também de manter a comunhão com os viventes , não podendo orar por nós ou nós por eles. 

O que pensar sobre isso ?

Sintetizando

Para muitos, após a morte do corpo a alma cai em uma especie de adormecimento, em não consciência. Aqueles que defendem essa tese retornam (na maioria esmagadora dos casos sem o saber) aos mais remotos livros da Bíblia, nos quais se professa a crença no Cheol. Para os antigos Hebreus , tratava-se de um lugar subterrâneo , um reino , uma morada,  uma região destinada aos mortos, onde ali ficavam adormecidos e sem consciência , incapazes de realizar qualquer tipo de ação. Os próprios judeus superaram tal crença a partir do seculo II, passando a admitir a ressurreição dos mortos e a recompensa póstuma de cada alma. Tenhamos em vista os textos sagrados Dn 12, 1-3; 2Mc 7, 9.11.14...; Sb. 2-5. Já no Novo Testamento, a noção de vida consciente e lúcida dos que se foram é ainda mais nítida (basta contemplarmos o Apocalipse onde se apresenta os mártires e demais justos a cantar os louvores de Deus) vejam-se Fl 1,21-23 e Lc 23, 43.

Analisemos o Problema

A antiga concepção escatológica do povo judeu afirmava que, após a morte do homem nesse mundo, seu corpo é sepultado e um núcleo de sua personalidade - o refaím - sobrevive adormecido e inconsciente em um lugar chamado Cheol. Tal crença se devia a necessidade de evitar que, a exemplo dos povos pagãos, o povo de Israel passasse a dar culto aos antepassados ( a manutenção do estrito monoteísmo exigia tal postura). Tenhamos em vista os seguintes testos:

Sl 6,6: "Na morte quem se lembra de Ti ? Quem te louvará no Cheol ?"
Sl 88, 5s "Sou visto como aqueles que baixam à cova... despedido entre mortos, como vitimas que jazem no sepulcro, das quais já não te lembras, porque foram separadas de tua mão ... Realizas maravilhas entre os mortos ? As sombras se levantam para te louvar ? Falam de Teu amor no sepulcro ? da Tua fidelidade no lugar da perdição ? Conhecem Tuas maravilhas nas trevas e Tua justiça na terra do esquecimento ?" 
Não é preciso dizer que tal concepção afligia os justos , sabedores que após a morte seriam submetidos a mesma sorte dos ímpios, todos inconscientes no Cheol, sem poder receber a sanção merecida. Deus, acompanhava o fiel na vida presente, premiando-os na vida presente com bens materiais, vitórias em batalhas, saúde, amigos leais , boa família , longevidade ou, ao contrário (em caso de serem maus), deitando-lhes doenças, misérias, derrotas ...

Todavia , a experiência mesma desmentia tal tese, pois era evidente que nem todos os justos eram sadios , prósperos ou vitoriosos, bem como nem todos os pecadores caiam em enfermidade, miséria, inimigos ... Por isso a perplexidade de alguns personagens bíblicos ante a prosperidade dos ímpios ou seu lamento diante das tardanças de Deus a trazer recompensas ...

Tomemos como exemplo a história de Jó. Mergulhado entre terríveis tribulações , não tendo cometido mau algum, se vê sem explicações para a moléstia que o aflige, ao passo que seus amigos o acusam de prevaricador e o orientam a confessar seus pecados para que seja curado. O livro termina com um apelo para que Deus julgue a perplexidade de Jó e seus amigos. Deus não intervem , mostra a Jó que ele é incapaz de O arguir , já que não é capaz de compreender Seus desígnios e Sua sabedoria. A explicação não é dada a Jó - Essa, somente seria dada muito mais tarde na história da salvação mediante a revelação de uma vida póstuma consciente e lucida, tal revelação seria prematura na época dos acontecimentos do livro (mais ou menos no século IV a.C).

Outro personagem que desfila sua aflição é o Eclesiastes. Este, diante da realidade de que tudo é como o sopro do vento que a mão simplesmente não pode reter, compreende que nem mesmo o brilho de um reino pode satisfazer os anseios do ser humano. Dai a tristeza de seu livro. O Eclesiastes não trazia em sua mente o conhecimento sobre a vida póstuma, como se depreende de seus dizeres:
"Os mortos não sabem nem terão recompensa, porque sua memória está no esquecimento ... Nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol." (Ecl 9, 4-6)
Diante dessa angustiante realidade, os profetas ousaram pedir a Deus contas sobre tal paradoxo: Como pode o justo, reto diante dos olhos do Senhor e obediente a Sua vontade, ser maltratado pela sorte ? E como pode ocorrer que pecadores, inimigos do Senhor, sejam tão agraciados com os bens materiais e os prazeres da vida ?

Jr 12,1s: “Tu és justo demais, Senhor, para que eu entre em processo contigo. Contudo falarei contigo sobre questões de direito. Por que prospera o caminho dos ímpios ? Porque os apóstatas estão em paz ? Tu os plantaste, eles criaram raízes, vão bem e produzem fruto. Tu estás perto de sua boca, mas longe de seus rins". Os ímpios são felizes neste mundo; têm Deus nos lábios, mas não O têm em seu íntimo (em seus rins).

Ou ainda:

Hab. 1, 1s: "Até quando , Senhor, pedirei socorro e não ouvirás , gritarei a Ti violência e não me salvarás ? Porque me fazer ver a iniquidade e contemplar a opressão ? Rapina e violência estão diante de mim; há disputas, levantam-se contendas ! Por isto a lei se enfraquece e o direito não aparece mais. Sim, o ímpio cerca o justo; por isto o direito aparece torcido !".
E qual é a resposta de Deus ?

Hab. 2, 1-4: "Então o Senhor respondeu-me dizendo: Escreve a visao, grava-a claramente sobre tábuas para que a possas ver facilmente. Porque é ainda uma visao para um tempo determinado; ela aspira por seu termo e não engana; se ela tarda, espera-a porque certamente virá, não faltará ! Eis que sucumbe aquele cuja alma nao é reta, mas o justo viverá por sua fidelidade".
 Como podemos facilmente entender, o Senhor não responde aos profetas, pois a resposta consistiria em dizer-lhe que há outra vida, na qual a justiça, violada pelo livre arbítrio dos homens será restaurada plenamente.

Caminhando Para Uma Solução (Consolo aos Justos)

A concepção do Cheol pelos Judeus era um verdadeiro obstaculo para quem queria ser fiel a Lei Divina; a tal ponto que alguns escritores sagrados buscaram supera-la por sua própria conta. Tal foi o caso referente a Elias que, segundo a concepção dos fieis de Israel, não podia terminar seus dias no Cheol. Dai a imagem de um carro de fogo que o leva para o céu depois da morte ( 2Rs 2, 11s). Assim também Henoque, que teria sido arrebatado aos céus após a morte, porque foi justo e amigo de Deus (Gn 5, 21s). Registremos ainda alguns Salmos:

Sl 116, 2s "Não abandonarás minha vida no Cheol nem deixarás que teu servo veja a cova. Ensinar-me-ás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença e delícias à tua direita perpetuamente."
Sl 49. 16 "Deus resgatará minha vida das garras do Cheol e me tomará".
Sl 73. 23 "Quanto a mim, estou sempre contigo. Tu me agarraste pela mão direita. Tu me conduzes com o teu conselho e com a tua glória me atrairás" .
Como podemos ver nesses três salmos é expressa a esperança. O Senhor libertará aquele que é justo e o conduzirá a vida verdadeira.

Enfim , a Solução

No Antigo Testamento

Vimos que, nos séculos mais antigos, os israelitas não concebiam póstuma retribuição. mas sim a inconsciência dos refaim após a morte. Tal doutrina não parece justa ou boa. Naturalmente tal fase provisória cederia à plena revelação da recompensa da vida póstuma sem a qual a vida presente não se explica , pois a ordem é violada neste mundo não poucas as vezes em favor dos maus , para grande decepção dos bons.
No século I antes de Cristo já se professava a crença em uma alma imortal capaz de receber seu castigo ou sua recompensa na vida pós morte. O livro da Sabedoria dá testemunho disso, escrito por um judeu no Egito, o livro afirma a retribuição de justos e pecadores nos textos abaixo:

Cap 5, 15 " Mas os justos viverão eternamente; sua recompensa está no Senhor, e o Altíssimo cuidará deles . Receberão magnifica coroa de real e, das mãos do Senhor, o diadema da beleza; com sua direita Ele os protegerá , com seu braço os escudará".
Cap 3, 1-4. 10 "A alma dos justos está nas mãos de Deus; nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos parecem morrer .... mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade; por um pequeno castigo receberão grandes favores. Julgarão as nações, dominarão os povos e o Senhor reinará sobre eles sempre. Mas os ímpios serão castigados segundo seus raciocínios ; desprezaram o justo e se afastaram do Senhor". 
O texto não fala em ressurreição, mas apenas em sobrevivência da alma lúcida no além. A razão pela qual não se comenta a ressurreição é porque o autor escreveu no Egito, terra de cultura helenística para a qual uma alma retornando ao corpo é uma ideia de punição , de desgraça. Todavia, no mesmo período histórico, os judeus que residiam em Israel professavam a ressurreição. Vejamos os textos abaixo:

Dn 12, 2s: "Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão., uns para a vida eterna, e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento, e os que ensinam a muitos a justiçã hão de ser como as estrelas por toda a eternidade".
2Mc 7 "Registra as ultimas palavras dos irmãos macabeus condenados a morrer por causa da sua fé: "Tu, celerado, nos tiras da vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressurgir para uma vida eterna, à nós que morremos por suas leis!" ". 
"Do céu recebi estes membros, e é por causa de suas leis que os desprezo, pois espero dele recebê-los novamento" (y. 11).
"Nossos irmãos, após ter suportado uma aflição momentânea por uma vida eterna já estão na Aliança de Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, has de receber os justos castigos da tua soberba" (v. 36) 

Com o passar dos tempos, a fé na ressurreição se firmou cada vez mais em Israel. A fé nesse fato era corolário lógico da crença em uma sanção póstumo; com efeito, a mentalidade em Israel, sempre disposta a afirmar o concreto, dificilmente conceberiam sorte feliz para as almas que estivessem fora do corpo; estariam condenadas a viver uma vida mutilada.

Citemos ainda a visão de Judas Macabeu, que no século II a.C (muito antes da teologia Cristã compreender o poder da intersecção dos Santos) vê o profeta Jeremias no além orando pelo povo de Deus que lutava na terra:

"Apareceu um homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava. Tomando então a palavra , disse Onias: Este é o amigo de seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e pela cidade santa; Jeremias, o Profeta de Deus. Estendendo então a sua mão direita, Jeremias entregou a Judas uma espada de ouro pronunciando estas palavras ... Recebe esta espada santa, presente de Deus , por meio da qual esmagarás teus adversários" (2Mc 15, 13-16).
 Tal texto demonstra que os justos não estão inconscientes no além.

No Novo Testamento


No novo testamento basta lembrar o apocalipse para ver a nitidez da referencia a sobrevivência lúcida dos que partiram desse mundo. Nele , vemos referencia dos justos junto a Deus a a cantar os louvores do Senhor:

" Vi uma grande multidão que ninguem podia contar, de todas as nações, tribos, povos e linguas. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro trajados com vestes brancas e palmas na mão. E em alta voz proclamavam: 'A salvação pertence ao nosso Deus, que esta sentado no trono, e ao Cordeiro ...' "
" Estes são os que vêm da grande tribulação, lavaram suas vestes e alvejaram-nas no sangue do Cordeiro. É por isto que estão diante do trono de Deus, servindo-lhe dia e noite em seu templo" (AP 7, 9s. 14s)
"Ainda os mártires , diante do altar simbólico na corte celeste, clamam em alta voz: 'Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra ?' '" (6, 9)
Por fim a palavra de Jesus ao bom ladrão:

"Ainda hoje estarás comigo no paraíso !" (Lc 23, 43) 
Não há dúvida, o conceito de adormecimento dos que deixaram este mundo e passaram para o além está superado desde o século II a.C,  na tradição judeu-cristã. Professar tal conceito nos dias de hoje é desprezar a Revelação neotestamentária e regredir aos termos iniciais do pensamento hebraico, conceito que certamente era provisório e tornava sem sentido a vida presente.

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